domingo, 23 de agosto de 2009

A DEMONSTRAÇÃO DO PROF. ROUSS - Josef e Karel Capek

Entre os presentes sobressaíam: o Ministro do Interior e o da Justiça, o chefe da Polícia, vários deputados, altos funcionários, juristas preeminentes, cientistas de renome e, naturalmente, representantes da imprensa, pois estes metem o nariz em tudo.— Meus senhores — começou o Sr. C.G. Rouss, professor da Universidade de Harvard, nosso famoso patrício, hoje cidadão americano —, a experiência que eu vai demonstrar estar baseada em trabalhos já antigos de um grupo de eruditos cientistas, colegas e colaboradores meus. Indeed o assunto, de modo geral, não é novidade, e... realmente... é coisa até... batida — continuou, contente por lhe haver ocorrido a palavra exata. — Só the method, e, hum... a aplicação prática de some experiences teoréticas foram object do meu trabalho. Then, peço, principalmente aos senhores criminalistas, julgarem a coisa na base de sua própria prática. Well! Vejamos! É o seguinte: Eu direi uma palavra, e os senhores deverão responder-me com outra palavra que just in the moment lhes ocorra, ainda que seja um nonsense... ou... uma bobagem, quer dizer, um disparate. E no fim da experiência eu ir dizer, conforme as palavras respondidas pelos senhores, o que há nas suas cabeças, o que estão pensando e o que estão escondendo. Compreendem, gentlemen? Eu não vai esclarecer teoreticamente: trata-se de associações, idéias reprimidas, um pouco de sugestão e something else. Eu vai ser muito breve: o que se precisa, é... well... é eliminar a vontade e a reflexão; assim se revelam as connections subconscientes e eu vai reconhecendo, por aí, o que... o que... — o famoso ilustre professor procurava a expressão — well, what’s on the bottom of your mind.— O que está no âmago de sua alma — soprou alguém no auditório.— Perfeitamente — concordou C.G. Rouss, satisfeito. — Os gentlemen vão apenas dizer, automaticamente, o que lhes vier à cabeça no momento, sem nenhum control of reserve. Meu business será, então, to analyse tais idéias. That’s all. Quero demonstrá-lo primeiro num caso, hum... criminal, depois em alguém do auditório que se prontifique a isso. Well, o Sr. Chefe da Polícia irá dizer-nos what is the matter about o caso desse homem. Faça o favor.O chefe da Polícia levantou-se e esclareceu:— Meus senhores, o homem que mandarei introduzir neste recinto é Tcheniek Sukanek, serralheiro e lavrador em Zabiehlice. Está preso há uma semana, por suspeita de ser o assassino do chofer de táxi José Tchepelka, desaparecido há quinze dias. Os motivos de tal suspeita são os seguintes: o carro de Tchepelka foi encontrado no palheiro do preso; no volante e debaixo do banco do chofer notaram-se manchas de sangue humano. O indiciado naturalmente nega tudo, afirmando haver comprado o carro de Tchepelka por seis mil coroas, pois tem a intenção, ele mesmo, de começar a trabalhar como chofer de praça. Apuramos que o desaparecido vinha efetivamente falando em abandonar o negócio, vender o carro e empregar-se como chofer. Aí, porém, terminam os vestígios. À falta de outros indícios, o preso deverá ser entregue amanhã à Casa de Detenção de Pankrats. Pedi a autorização a fim de que o Prof. Rouss, nosso ilustre compatriota, o submeta à sua experiência. Quando quiser, professor...— Well — disse o professor, que atentamente ia tomando algumas notas. — Mande-o entrar, please.A um sinal do chefe da Polícia, um guarda introduziu Tcheniek Sukanek, rapaz de cara fechada, com uma expressão que denunciava o mais profundo desprezo, parecendo dizer que estava resolvido a não se entregar.— Venha cá — disse o professor em tom severo. — Não lhe vou fazer perguntas; apenas direi umas palavras, e você terá de retrucar imediatamente com a primeira palavra que lhe vier à cabeça. Está compreendendo? Pois preste atenção: copo!— M...a! — respondeu o Sr. Sukanek, teimoso.— Escute, Sukanek — interveio veemente o Chefe da Polícia —, se você não quiser responder direito, eu o mando a novo interrogatório, compreendeu? E isso, você sabe, durará a noite toda. Tome cuidado! Recomecemos!— Copo — repetiu o Prof. Rouss.— Cerveja — resmungou Sukanek.— Assim, como você vê — disse o ilustre professor —, vai tudo indo bem.Sukanek olhava desconfiado. Não haveria nisso algum truque? — pensava.— Rua — diz o professor.— Carros — responde Sukanek de má vontade.— Deve responder mais depressa. Casa! — Campo. — Torno! — Latão.— Muito bem! — Parecia que Sukanek já não fazia objeções à brincadeira.— Mãe! — Tia. — Cachorro! — Canil. — Soldado! — Artilheiro.Assim foi indo, golpe a golpe, cada vez mais depressa; agora Sukanek parecia achar graça; lembrava-se da maneira de trunfar no jogo de cartas. Meu Deus! De quanta coisa ele se lembrava com essa brincadeira!— Caminho! — Estrada. — Praga! — Beroun. — Esconder! — Enterrar. — Limpar! — Manchas. — Trapo! — Saco. — Enxada! — Quintal. — Buraco! — Cerca. — Cadáver!Silêncio.— Cadáver! — insistiu o professor. — Então você o enterrou ao pé da cerca, não?— Não disse isto! — explodiu o Sr. Sukanek.— Você enterrou o cadáver ao pé da cerca do seu quintal — repetiu firmemente C.G. Rouss — depois de o ter matado quando ia a caminho de Beroun! Limpou as manchas de sangue do carro com um saco. Que fez desse saco?— Não é verdade! — gritou Sukanek. — Comprei o carro do Sr. Tchepelka. Ninguém me embrulha assim, não, ouviu?!— Espere, homem — disse Rouss —, pedirei aos policemen que vão lá verificar. Isto não é mais o meu business. O homem pode sair. Reparem, meus senhores, que gastamos dezessete minutos. Foi muito rápido. É que era um caso muito banal. Quase sempre dura uma hora. Agora eu gostaria de pedir que viesse algum dos senhores, a quem direi também umas palavras. Desta vez vai demorar muito, porque não sei qual é o seu hidden... hidden... como é mesmo que se diz?— Segredo — ajudou alguém do auditório.— Isto, segredo — repetiu o nosso grande patrício, todo radiante. — Conheço muito a ópera de Smetana que tem esse nome. A experiência vai nos custar muito tempo, até que o paciente nos revele o seu caráter, o seu passado e as suas mais recônditas idéias.— Pensamentos — explicou a voz do auditório.— Well. Pergunto, senhores: quem quer submeter-se à análise?A pergunta não teve resposta. Um dos presentes deu uma risada, mas ninguém se mexeu.— Por favor — insistiu C.G. Rouss —, não vai doer.— Vá o senhor — sussurrou o Ministro do Interior ao da Justiça.— Você deve ir, como representante do seu partido — insinuou um deputado a outro.— Sr. Chefe de Departamento, faça o favor de vir — encorajou um alto funcionário a um colega de outro ministério.A situação começava a tornar-se penosa. Nenhum dos presentes se levantara.— Façam o favor, senhores — repetiu o cientista americano pela terceira vez. — Será que têm medo de se trair?A essa altura o ministro do Interior voltou-se para trás e disse entre dentes:— Então! Alguém que se resolva, meus senhores!Nas últimas filas do auditório alguém tossiu modestamente e levantou-se. Era um velhinho um tanto ressequido, já bem coçado, e cujo pomo-de-adão tremia.— Eu... hum — lançou timidamente —, se ninguém... então, com licença, eu...— Venha cá — interrompeu o americano em tom autoritário. — Sente-se aqui. Tem de dizer a primeira coisa que lhe vier à cabeça. Não deve pensar, tem de falar mechanically, sem se preocupar com o que irá dizer. Entendeu?— Pois não! — disse o homem-cobaia, com boa vontade, um pouco intimidado ante auditório tão distinto.Tossiu de leve e piscou, como um estudante em dia de exame. O cientista disparou a primeira palavra:— Árvore!— Gigantesca — sussurrou o velhinho.— Como, por favor? — perguntou o sábio, como se não houvesse entendido bem.— Gigante da floresta — esclareceu o homem, tímido.— Oh, I see. — Rua!— Rua... ruas de aspecto festivo — replicou o homem.— Que quer dizer com isso?— Uma festa, não? Ou um enterro.— Isso mesmo. O senhor deveria dizer apenas festa. Sempre que possível, só uma palavra.— Pois não!— Continuemos. — Comércio!— Animado. Crises nos negócios. Negociata política.— Hum... — Canal!— Que canal, por favor?— Não importa. Diga uma palavra, depressa.— Se o senhor pudesse dizer, por exemplo, canais...— Well, canais.— Competentes — retrucou satisfeito o homenzinho.— Torquês!— Martelo. Martelando as palavras do discurso. Desferiu violentas marteladas.— Very curious! — murmurou o cientista. — Sangue!— Sangue subindo às faces. Sangue inocente derramado. História escrita com sangue.— Fogo!— A ferro e fogo. Heróicos bombeiros. Discurso flamejante. Mane, tekel.1— É um esquisito case — disse o professor, perturbado. — Mais uma vez, homem: O senhor deve dizer só a primeira idéia, compreende? Só o que lhe ocorrer automatically, ao ouvir a minha palavra. Prossigamos. Mão!— Fraterna que ajuda. Segura a bandeira. De punhos cerrados. Mãos sujas. Cascudo.— Olhos!— Testemunha ocular. À vista do público. Olhos inocentes de criança. Olhos úmidos de lágrimas...— Basta, basta! Cerveja!— Chope duplo. Demônio do álcool.— Música!— Música do futuro. Orquestra coroada de êxito. Concerto das grandes potências. Harmonia da paz. Hinos nacionais.— Frasco!— Vitríolo. Amor infeliz. Dores terríveis. Faleceu no hospital em meio aos mais atrozes sofrimentos.— Veneno!— Veneno e fel. Poços envenenados.C.G. Rouss coçou a cabeça:— Never heard that. Outra vez, por favor. Eu queria chamar a atenção dos senhores: começamos sempre por coisas... hum... plain, quer dizer, comuns, simples, para encontrar o principal interest e a profession do paciente.— Continuemos. Conta!— Ajustar contas com o inimigo. Isso vai por conta dos nossos adversários. Prestar contas à posteridade...— Hum... Papel!— Até o papel enrubesce de vergonha — declarou o homem energicamente. — Papel-moeda. O papel agüenta tudo.— Bless you!2 — solta o cientista, já meio zangado. — Pedra!— Apedrejar. Pedra de túmulo. Saudade eterna — respondeu o homem-cobaia, místico.— Ave, anima pia!3 Carro!— Carro de triunfo. Rodas do destino. Pronto-socorro. Rico préstito, com carros alegóricos.— Ah! that’s it!4 — exclamou C.G. Rouss — Horizonte!— Escuro. Nuvens negras toldam os horizontes políticos. Horizontes estreitos. Abrir novos horizontes.— Armas!— Desleais. Armadura completa. Bandeiras desfraldadas. Atacar pelas costas com setas envenenadas — exclamou logo o homem, entusiasmado. — Não recuaremos da luta. Pandemônio do combate. Luta eleitoral.— Elemento.— Fúria dos elementos. Forças elementares. Deveres elementares das classes dominantes.— Basta! O senhor é jornalista, não?— Sim, senhor — afirmou o homem-cobaia —, e já há trinta anos. Sou o redator Vachatko.— Thank you — agradeceu secamente nosso famoso patrício. — Finished, gentlemen. Analysing as respostas deste senhor, podemos verificar que é um jornalista. Creio que seria inútil continuar a experiência. Só perderíamos nosso tempo. Excuse me, a experiência falhou. Lamento, gentlemen.— Vejam só! — exclamou o Sr. Vachatko à noite, na redação, correndo os olhos pelo material de serviço. — Então a polícia informa que encontrou o cadáver do tal José Tchepelka; estava enterrado no quintal do Sukanek, junto da cerca, e debaixo do cadáver encontraram um saco manchado de sangue. Estão vendo? O diabo do Rouss acertou tudo, direitinho. Parece incrível, meus colegas. Eu não disse uma única palavra a respeito de jornais, e ele descobriu, sem mais nem menos, que eu sou jornalista: “Senhores, estão diante de um eminente jornalista, de grande mérito”... Eu mesmo escrevi, aliás, na nota sobre a conferência: “As declarações do nosso famoso patrício foram acolhidas com lisonjeiro apreço pelos nossos círculos profissionais”. Mas esperem, será melhor assim: “As declarações altamente interessantes do nosso patrício foram acolhidas com o merecido apreço, vivo e lisonjeiro, pelos nossos círculos profissionais”. Esta é que é a verdade!NOTAS:1 - Mane, tekel, fares — Palavras proféticas de ameaça que, segundo a Bíblia, apareceram escritas em letras de fogo, por mão invisível, nas paredes da sala onde Baltasar, o último rei da Babilônia, se entregava a um festim orgíaco, justamente quando Ciro, rei dos persas, penetrava na cidade. Significam: pesado, contado, dividido.2 - Bless you! — Valha-me Deus!3 - Ave, anima pia (latim): Salve, alma piedosa.(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias — Nova Fronteira, vol. 10, p. 396)