Crianças que Escrevem e Não Lêem: Dificuldades Iniciais em Alfabetização
Autora: Michelle Brugnera Cruz
Introdução
O presente artigo trata das dificuldades iniciais na aprendizagem da leitura. É comum a queixa de que a criança, ao final da alfabetização, escreve, mas não lê. Com embasamento na Psicologia Cognitiva e nos estudos do Letramento, o artigo tem como objetivo apresentar um estudo sobre a dicotomia da aprendizagem da leitura e da escrita inicial. Primeiramente, faz-se uma revisão do embasamento teórico sobre a aprendizagem da escrita, posteriormente dos processos de leitura e seguindo, faz-se uma análise das dificuldades iniciais que envolvem a não-aprendizagem da leitura.
1 - Aprendizagem da Escrita: Revisitando saberes
Pelas pesquisas de FERREIRO e TOBEROSKY (1979), sabe-se que a criança já pensa sobre a escrita antes mesmo da alfabetização, isto é, a aquisição da representação escrita se dá por uma psicogênese, um processo de assimilação e acomodação de novas aprendizagens, levantamento de hipóteses e resolução de problemas, muito antes de ingressarem na primeira série do ensino fundamental.
As cidades se constituem em uma comunidade letrada, que faz uso da leitura e da escrita em práticas sociais e as crianças que convivem nesse meio, logo percebem a importância e o sentido dessas práticas, buscando naturalmente essa aquisição, pensado sobre a escrita, e levantado hipóteses tal qual a humanidade desenvolveu o sistema alfabético.
Para FERREIRO e TOBEROSKY (1979),
É extremamente surpreendente ver como a progressão de hipóteses sobre a escrita reproduz algumas das etapas-chaves da evolução da história da mesma na humanidade, apesar de que nossas crianças estejam expostas a um único sistema de escrita. A linha de desenvolvimento vai do pictograma estilizado à escrita de palavras, à introdução posterior de um princípio de “fonetização”, que evolui paulatinamente até as escritas silábicas e depois de uma complexa etapa de transição, culmina no sistema puramente alfabético dos gregos.
Dessa forma, em suas pesquisas, as autoras identificaram quatro estágios da progressão da escrita, que seria uma filogênese das etapas que a humanidade passou. São elas: a hipótese pré-silábica (desenho como escrita), a hipótese silábica (uma letra representando a sílaba), a hipótese silábico-alfabético (uma letra para cada sílaba com estruturação de sílabas) e finalmente a hipótese alfabética (representação grafema-fonema).
Para CAGLIARI (2003),
“A alfabetização é sem dúvida, o momento mais importante da formação escolar de uma pessoa, assim como a invenção da escrita foi o momento mais importante da História da humanidade, pois somente através dos registros escritos o saber acumulado pôde ser controlado pelos indivíduos”.
Dentro desse contexto, é papel da escola infantil oportunizar às crianças um ambiente alfabetizador, que estimule a construção da leitura e da escrita, do pensamento letrado, da utilização da leitura e da escrita cotidianamente de uma forma lúdica.
É importante que se trabalhe a escrita como uma forma de permitir a leitura. Escrevemos uma história para que outros a apreciem. Quem escreve, escreve para ser lido. A leitura poder ser trabalhada como a realização do objetivo da escrita, lemos para compreender, para conhecer, para descobrir, para se informar, para lazer e prazer. Mas primeiramente, o leitor irá decifrar, decodificar a escrita, para posteriormente entender a linguagem encontrada, compreender a mensagem do texto, refletir e formar o próprio conhecimento e opinião a respeito do que leu.
2 - Sobre a Leitura: um olhar da Psicologia Cognitiva
A aprendizagem da leitura não é apenas a aquisição de códigos gráficos, mas a capacidade de elaborar e utilizar a linguagem escrita. A leitura envolve raciocínio, interpretação e compreensão ativa do leitor, aspectos que superam a mera decifração mecânica grafema-fonema. Envolve também aspectos cognitivos, lingüísticos, perceptivos que interagem; é uma tarefa de estratégica que exige atenção e seleção. Tem como pré-requisito o desenvolvimento da consciência fonológica, o desenvolvimento de representações lexicais, uma memória semântica rica (bom número de significados), memória operativa. (manter ativo na memória alguns elementos com significado) e esquemas de conhecimento (conhecimentos prévios).
Uma das primeiras tarefas da leitura são os processos de percepção visual, o direcionar dos olhos para diferentes pontos do texto. Diferentemente da impressão de que os olhos percebem as palavras de forma linear, contínua, e uniforme através das linhas do texto, os olhos do leitor avançam em pequenos saltos chamados movimentos sacádicos, alterando a fixação.
É necessário que se trabalhe a análise global das palavras através de métodos analíticos e globais, que levam em conta que na aprendizagem inicial da leitura o pensamento da criança se fixa no todo ante as partes, da mesma forma que é um pensamento funcional, ligado ao significado.
Para acessar o significado, o leitor utilizará duas vias diferentes: a rota fonológica e a rota lexical. A rota lexical é o reconhecimento visual das palavra, é o que ocorre na leitura dos bons leitores que possuem um “dicionário interno de palavras”. A rota fonológica é a identificação grafema-fonema, é a decodificação.
No ensino da leitura deve-se trabalhar a representação fonológica da palavra e pouco-a-pouco deve-se introduzir a criança na aprendizagem de uma representação visual da palavra que se dá com a prática leitora e com o letramento, articulando as vias fonológicas e lexicais, equilibrando aspectos sintáticos e semânticos, desenvolvendo a compreensão e a capacitação da interpretação.
3 - Dificuldades Iniciais em Leitura
Seguindo a pesquisa de FERREIRO e TOBERSKY (1979), a criança com escrita alfabética faz uma representação grafema-fonema das palavras.
O mesmo processo pode não se dar na leitura, uma vez que decodificar através da rota fonológica de leitura pode ser muito cansativo e desestimulante quanto não ligada ao significado textual. Essa forma de leitura se contrapõe ao pensamento global da criança, que estará muito mais preocupada com o que diz o texto do que com a decodificação.
Uma criança alfabética pode escrever CAXORO, mas ao ter que ler CACHORRO em determinado contexto pode se sentir cansada na decodificação.
Para a criança pequena, os livros são muito mais do que letras e sons, por isso é fundamental incentivar que a criança se arrisque na rota lexical, através de questionamentos que a levem a pensar sobre o significado e não apenas sobre o som, elaborando hipóteses de leitura. LEMOS (IN: ROJO,) enfatiza a importância da oralidade para iniciar o relacionamento com o texto escrito:
As práticas discursivas orais em torno de objetos portadores de texto estão na origem das relações que se estabelecem entre a criança e o texto. Através dessas práticas é que o texto deixa o seu estado de “coisa” para se transformar em objeto significado antes pelos seus efeitos estruturantes sobre essas mesmas práticas orais do que pelas propriedades perceptuais positivas. Não se trata aí, portanto, de uma oralidade que desvenda o texto escrito nem que é por ele representada, mas de uma prática discursiva oral que, de algum modo, o significa, isto é, que o torna significante para o sujeito... Assim como o texto oral instaura relações com objetos, relações que são significadas como referenciais, o texto escrito pode entrar em relação com o texto oral. Ganhando uma significação que vem a ser interpretada como referência a ele. Nesse processo de ressignificação que incindiria fundamentalmente sobre cadeias de texto-discursos e não sobre unidades como palavras e sílabas, letras e fonemas – produtos desses processos -, o papel do outro seria, como na aquisição da linguagem oral, o de intérprete. Lendo para a criança, interrogando a criança sobre o sentido do que “escreveu”, escrevendo para a criança ler, o alfabetizado, como o outro que se oferece ao mesmo tempo como semelhante e como diferente, insere-a no movimento lingüístico-discursivo da escrita.
O trabalho sobre o léxico-visual seria o reconhecimento visual das palavras, para além da decodificação, que pode ser explorada através de práticas discursivas.
Para GARCIA (1998) uma forma de potencializar a representação léxica das palavras, seria fazer conexões com o significado através da sua correspondência com o grafema. Para isso, podem ser utilizados desenhos e mímica das palavras.
Segundo KLEIMAN (1998),
O conhecimento do aspecto psicológico, cognitivo do processo de leitura é importante por que ele pode alertar contra práticas pedagógicas que inibem o desenvolvimento de estratégias adequadas para processar e compreender o texto. .. a relevância desses aspectos do processamento para o desenvolvimento de estratégias flexíveis de leitura é clara. No início, a leitura será muito mais difícil para o leitor e por isso ela fica quase que limitada à decodificação, se o professor não tomar a atividade comunicativa, fazendo comentários, perguntas, enfim, fugindo da forma, já saliente demais devido às dificuldades iniciais do leitor, e focalizando o sentido.
A não-aprendizagem da leitura também pode estar relacionada com o simbólico da questão. Aprender a ler representa crescimento diante da família e do mundo, exige autonomia e descentramento que questão sendo construídos ainda pela criança pequena. Quando se escreve, se tem o controle da comunicação, sabe-se o que se vai expressar, em contrapartida, na leitura não há esse controle, não se sabe exatamente que mensagem o autor expressou em seus escritos. Ler é uma atividade extremamente complexa, que envolve problemas fonéticos, culturais, ideológicos e filosóficos. Ler é estar em contato com outro, o outro autor, cujo discurso não se possui controle. Assim, “não quero crescer”, “não posso ler o meu papel no mundo”, não posso fazer leituras” influenciam nas dificuldades de aprendizagem na leitura. Vencer esse medo é o primeiro desafio.
Considerações Finais
A aprendizagem da leitura e da escrita são processos distintos que se complementam. Enquanto a escrita se dá por estágios de elaboração de hipóteses, a leitura envolve processos para além da decodificação, envolvendo movimentos oculares, memória de trabalho, memória semântica e precisa ser uma aprendizagem com significado.É fundamental que os profissionais que atuam na alfabetização, seja no ensino ou na clínica psicopedagógica, tenham clareza desses dois processos, que estão intimamente ligados ao crescimento da criança, à sua autonomia e descentremanto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Lingüística. São Paulo: Scipione, 2003
BETTELHEIM, Bruno. ZELAN, Karen. A Psicanálise da Alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992
FERREIRO, Emília. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre Alfabetização. São Paulo: Cortez, 2001
GARCIA, Jesus Nicásio. Manual de Dificuldades de Aprendizagem: Linguagem, leitura, escrita e Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998
KLEIMAN, Ângela B. Os significados do letramento. Mercado das Letras
KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: teoria e prática. São Paulo: Pontes, 1998
POERCH, José Marcelino. Suportes Lingüísticos para a Alfabetização. Porto Alegre: Sagra, 1990
PUYUELO, Miguel. RONDAL, Jean-Adolphe. Manual de Desenvolvimento da Linguagem na Criança e no Adulto. Porto Alegre: Artmed, 2007
ROJO, Roxane. Alfabetização e Letramento. Mercado das Letras
SINCLAIR, Hermine. A Produção de Notações na Criança: Linguagens, número, ritmos e melodias.Editora Cortez.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2001
SOARES, Magda. Linguagem e Escola – Uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1988
WEISS, Maria Lúcia Lemme. Psicopedagogia Clínica: Uma visão diagnóstica dos problemas de aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: DR&A, 2004.
SVC
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