sábado, 3 de julho de 2010

Poemas

Poema de Sete Faces (Carlos Drummond de Andrade)







Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra


disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.






As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.


A tarde talvez fosse azul,


não houvesse tantos desejos.






O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.


Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.


Porém meus olhos


não perguntam nada.






O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.


Quase não conversa.


Tem poucos, raros amigos


o homem atrás dos óculos e do bigode.






Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus


se sabias que eu era fraco.






Mundo mundo, vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo


seria uma rima, não seria uma solução.


Mundo mundo vasto mundo,


mais vasto é meu coração.






Eu não devia te dizer


mas essa lua


mas esse conhaque


botam a gente comovido como o diabo.






Porque (Carlos Drummond de Andrade)






Amor meu, minhas penas, meu delírio,


Aonde quer que vás, irá contigo


Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,


Sabendo embora ser perdido intento


O de cingir-te forte de tal modo


Que, desde então se misturando as partes,


Resultaria o mais perfeito andrógino


Nunca citado em lendas e cimélios


Amor meu, punhal meu, fera miragem


Consubstanciada em vulto feminino,


Por que não me libertas do teu jugo,


Por que não me convertes em rochedo,


Por que não me eliminas do sistema


Dos humanos prostrados, miseráveis,


Por que preferes doer-me como chaga


E fazer dessa chaga meu prazer?






A Um Ausente (Carlos Drummond de Andrade)






Tenho razão de sentir saudade,


tenho razão de te acusar.


Houve um pacto implícito que rompeste


e sem te despedires foste embora.


Detonaste o pacto.


Detonaste a vida geral, a comum aquiescência


de viver e explorar os rumos de obscuridade


sem prazo sem consulta sem provocação


até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.


Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.


Que poderias ter feito de mais grave


do que o ato sem continuação, o ato em si,


o ato que não ousamos nem sabemos ousar


porque depois dele não há nada?


Tenho razão para sentir saudade de ti,


de nossa convivência em falas camaradas,


simples apertar de mãos, nem isso, voz


modulando sílabas conhecidas e banais


que eram sempre certeza e segurança.


Sim, tenho saudades.


Sim, acuso-te porque fizeste


o não previsto nas leis da amizade e da natureza


nem nos deixaste sequer o direito de indagar


porque o fizeste, porque te foste.






Inconfesso Desejo (Carlos Drummond de Andrade)






Queria ter coragem


Para falar deste segredo


Queria poder declarar ao mundo


Este amor


Não me falta vontade


Não me falta desejo


Você é minha vontade


Meu maior desejo


Queria poder gritar


Esta loucura saudável


Que é estar em teus braços


Perdido pelos teus beijos


Sentindo-me louco de desejo


Queria recitar versos


Cantar aos quatros ventos


As palavras que brotam


Você é a inspiração


Minha motivação


Queria falar dos sonhos


Dizer os meus secretos desejos


Que é largar tudo


Para viver com você


Este inconfesso desejo






A Verdade (Carlos Drummond de Andrade)






A porta da verdade estava aberta,


Mas só deixava passar


Meia pessoa de cada vez.


Assim não era possível atingir toda a verdade,


Porque a meia pessoa que entrava


Só trazia o perfil de meia verdade,


E a sua segunda metade


Voltava igualmente com meios perfis


E os meios perfis não coincidiam verdade...


Arrebentaram a porta.


Derrubaram a porta,


Chegaram ao lugar luminoso


Onde a verdade esplendia seus fogos.


Era dividida em metades


Diferentes uma da outra.


Chegou-se a discutir qual


a metade mais bela.


Nenhuma das duas era totalmente bela


E carecia optar.


Cada um optou conforme


Seu capricho,


sua ilusão,


sua miopia.






As Sem-razões do Amor (Carlos Drummond de Andrade)






Eu te amo porque te amo.


Não precisas ser amante,


e nem sempre sabes sê-lo.


Eu te amo porque te amo.


Amor é estado de graça


e com amor não se paga.


Amor é dado de graça,


é semeado no vento,


na cachoeira, no eclipse.


Amor foge a dicionários


e a regulamentos vários.


Eu te amo porque não amo


bastante ou demais a mim.


Porque amor não se troca,


não se conjuga nem se ama.


Porque amor é amor a nada,


feliz e forte em si mesmo.


Amor é primo da morte,


e da morte vencedor,


por mais que o matem (e matam)


a cada instante de amor.










Ausência (Carlos Drummond de Andrade)






Por muito tempo achei que a ausência é falta.


E lastimava, ignorante, a falta.


Hoje não a lastimo.


Não há falta na ausência.


A ausência é um estar em mim.


E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,


que rio e danço e invento exclamações alegres,


porque a ausência, essa ausência assimilada,


ninguém a rouba mais de mim.






Os Ombros Suportam o Mundo (Drummond)






Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração.


Tempo em que não se diz mais: meu amor.


Porque o amor resultou inútil.


E os olhos não choram.


E as mãos tecem apenas o rude trabalho.


E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se,


mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.


És todo certeza, já não sabes sofrer.


E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?


Teus ombros suportam o mundo


e ele não pesa mais que a mão de uma criança.


As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios


provam apenas que a vida prossegue


e nem todos se libertaram ainda.


Alguns, achando bárbaro o espetáculo


prefeririam (os delicados) morrer.


Chegou um tempo em que não adianta morrer.


Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.


A vida apenas, sem mistificação.






Quadrilha (Carlos Drummond de Andrade)






João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava


Joaquim que amava Lili


que não amava ninguém.


João foi para os Estados Unidos,


Teresa para o convento,


Raimundo morreu de desastre,


Maria ficou pra tia,


Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes


que não tinha entrado na história.






A Língua Lambe (Carlos Drummond de Andrade)






A língua lambe as pétalas vermelhas


da rosa pluriaberta; a língua lavra


certo oculto botão, e vai tecendo


lépidas variações de leves ritmos.


E lambe, lambilonga, lambilenta,


a licorina gruta cabeluda,


e, quanto mais lambente, mais ativa,


atinge o céu do céu, entre gemidos,


entre gritos, balidos e rugidos


de leões na floresta, enfurecidos






Para Sempre (Drummond)






Por que Deus permite


que as mães vão-se embora?


Mãe não tem limite,


é tempo sem hora,


luz que não apaga


quando sopra o vento


e chuva desaba,


veludo escondido


na pele enrugada,


água pura, ar puro,


puro pensamento.


Morrer acontece


com o que é breve e passa


sem deixar vestígio.


Mãe, na sua graça,


é eternidade.


Por que Deus se lembra


- mistério profundo -


de tirá-la um dia?


Fosse eu Rei do Mundo,


baixava uma lei:


Mãe não morre nunca,


mãe ficará sempre


junto de seu filho


e ele, velho embora,


será pequenino


feito grão de milho.






Fazenda (Drummond)






Vejo o Retiro: suspiro


no vale fundo.


O Retiro ficava longe


do oceanomundo.


Ninguém sabia da Rússia


com sua foice.


A morte escolhia a forma


breve de um coice.


Mulher, abundavam negras


socando milho.


Rês morta, urubus rasantes,

logo em concílio.


O amor das éguas rinchava


no azul do pasto.


E criação e gente, em liga,


tudo era casto..


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